#37 registrar a história
reflexões sobre a imensa importância das nossas banalidades cotidianas
na edição de hoje: dois livros, o melhor filme que eu vi nesse ano, minha loja de tortas favorita em NY e essa rádio aqui, que tocou enquanto eu escrevia a edição.
há um tipo de liberdade em Nova York que se reflete na forma como as pessoas vivem suas vidas diariamente. três principais características me ajudam a entender essa sensação: a composição demográfica, a ideia de privacidade e a segurança pública.
é comum que as pessoas que vêm do Brasil me perguntem como elas devem agir nas ruas daqui pra manterem seu pertences, e elas mesmas, a salvo. eu digo que podem mexer no celular sem preocupação, conto que volto pra casa sozinha de metrô depois das onze da noite e recomendo uma cautela relaxada porque é raro ter notícia de atos de violência como os que são comuns nas metrópoles brasileiras. não é perfeito, mas o sistema funciona dentro da bolha.
quanto à privacidade, embora a palavra não esteja na constituição americana, há um consenso - assegurado juridicamente a partir da interpretação das leis - de que os americanos têm direito a ela, ainda que haja riscos hoje em dia a esse benefício. assim que eu me mudei, notei no dia a dia como essa ideia faz parte da rotina. todo mundo é muito “na sua”. pro bem e pro mal, ninguém liga muito pro que o companheiro do lado está fazendo - ou como se veste, anda, fala.
uma prova disso está na diversidade das mais de 180 nacionalidades presentes na cidade, que enchem as ruas de diferenças visuais radicais e inevitáveis. quando você observa comportamento, vestuário, beleza e estilo, nada se parece. grupos de clean girls e k-poppers compram matcha latte na mesma esquina do Bowery totalmente livres nesse habitat naturalmente diverso.


longe das belezas naturais do Rio de Janeiro, meu olhar foi atraído por essas belezas humanas de Nova York. em qualquer caminhada de cinco minutos, eu vejo uma enxurrada de gente e de cenas urbanas que eu gostaria de registrar. e meu meio favorito pra isso é a fotografia, pela praticidade e rapidez, principalmente. fotografo pra guardar o tempo, pra documentar essa vida de agora. capturo num instante tantas informações que olho pras fotos tiradas e elas me parecem livros abertos - sobre o contexto histórico, sobre o outro e, inevitavelmente, sobre mim.
nessa linha de registro do momento em que vivemos, foi interessante ler “As perfeições”, do italiano Vincenzo Latronico. não morri de amores pela história, mas gostei do incômodo que senti ao lê-la e, por isso, recomendo a leitura. defendo que a gente não consuma só o que é agradável e que todo mundo amou. o desconforto também gera reflexão, afinal.
a realidade do casal de italianos Anna e Tom morando em Berlim não tem nada a ver com a minha. mas algo neles me representa, representa a minha geração. foi como ver um retrato meu. um retrato nosso. o primeiro capítulo começa com uma descrição detalhada de uma casa que só pode pertencer a um jovem adulto morador de algum país ocidental, ali pelas décadas de 2010 a 2020. sabe aqueles clichês do minimalismo nórdico - e os exageros que surgiram em reação a ele? então, está tudo bem descrito lá, em pouco mais de 100 páginas.
pensando sobre o que me agradou ou não no livro, me lembrei de Annie Ernaux e de um livro dela que, esse, sim, eu amo: “O lugar”. esse causa incômodo também, mas é bem escrito, franco e do tipo que se reconhece como obra-prima na primeira virada da página. talvez eu tenha uma favorita.
a francesa ganhadora do Nobel de Literatura é uma mestre do registro do tempo, da época. e o faz com precisão, desprendimento e elegância, características que me conquistam na literatura. Ernaux nasceu em 1940 e apresenta nesse livro de 72 páginas, que é o alicerce da obra dela e a lançou pro reconhecimento no meio literário, um relato social da França daquele período, a partir da experiência dela com filha que ascendeu socialmente e tenta lidar com o pai que não conhece a realidade que ela vive.
o livro narra uma história que não tem nada a ver com a minha, mas na qual me reconheço porque é um relato humano. um registro de outra época, mas que se aproxima da minha, da nossa. é impossível não se comover e não se inspirar com a escrita perfeita de Ernaux.
inspiração da edição
no começo desse ano, decidi que ia anotar todos os filmes que eu visse e escolhi um aplicativo pra isso, o letterboxd. recomendo se você também quiser fazer um inventário cinematográfico com mais praticidade. talvez eu esteja com alguma obsessão por registros e memória. talvez seja só esquecimento. mas fato é que eu estava sentindo falta de me lembrar do que eu tinha visto e de dedicar mais tempo a revisitar os filmes e pensar sobre aspectos técnicos e subjetivos deles.
quase chegando ao meio do ano, tenho pouco mais de duas dezenas de obras na minha lista (privada) e só um filme com um coração do lado da avaliação: Pecadores, escrito, dirigido e produzido por Ryan Coogler. a certeza é que, mesmo que mil anos se passem, eu não terei me esquecido dele. já está na minha lista de filmes favoritos da vida.
no post acima, Coogler, que também dirigiu Creed e Pantera Negra, agradece primeiramente à audiência que fez a obra dele se tornar histórica. Pecadores teve a melhor bilheteria de estreia de um filme original, nos Estados Unidos, desde a pandemia. além disso, o diretor negociou um contrato com o estúdio responsável pelo filme que privilegia os artistas em vez dos contratantes, algo totalmente fora dos padrões da indústria.
objetivamente, trata-se de um filme musical de terror com vampiros, ambientado no Mississippi dos anos 1930. em condições normais, eu jamais teria ido ao cinema assistir a algo com essa descrição porque eu morro de medo. mas decidi ir dessa vez porque, assim que foi lançado, o filme repercutiu muito positivamente entre o público americano, que é maioria numa das redes sociais que eu gosto de acompanhar por aqui.
não vou dar nenhum spoiler e acho que quanto menos você souber sobre o filme, mais chances terá de se surpreender - e gostar. o resumo ali de cima é a superfície do roteiro. a história é muito mais profunda e toca em temas caros à sociedade de hoje, especialmente, em relação a questões raciais nos Estados Unidos. no mais, a experiência no cinema é muito imersiva, o filme foi captado pensando nisso, então, considere vê-lo na tela grande.
pra quem já viu, gostou, e quer saber um pouco mais a respeito da obra, compartilho algumas sugestões de conteúdos que eu amei:
entrevista do diretor pro jornalista David Sims, na revista The Atlantic. foi onde eu melhor entendi a importância desse projeto pro Ryan Coogler do ponto de vista pessoal dele.
aqui, uma conversa de Coogler com LeBron James. é divertido demais curtir a informalidade e espontaneidade do papo.
nesse vídeo, o diretor explica tecnicamente todas as várias possibilidades de exibição do filme nos cinemas. é bem técnico, mas muito interessante.
PH Santos fez a crítica mais alinhada com o que eu achei do filme, balanceando muito bem descrição, contexto e interpretação.
Alê Garcia destrincha muitas das referências da cultura negra no filme e traz mais um monte de fontes pra quem quiser se aprofundar.
nesse podcast (em vídeo), o diretor conversa com o compositor sueco Ludwig Göransson sobre o trabalho deles no filme e a influência no blues na trilha e na história.
um lugar para conhecer
eu nunca dispenso um docinho de boa qualidade. minha fissura não é simplesmente pelo açúcar, mas por um doce bem feito e saboroso. não precisa ser refinado e cheio de técnica, mas tem que ter personalidade. aqui em Nova York, achei os doces meio sem graça. tem muito cookie, muito buttercream e muito sabor artificial. precisei pesquisar muito pra montar uma lista - ainda tímida - de favoritos.





dada diversidade da cidade, sobre a qual falei lá em cima, é claro que tem todo tipo de doce aqui, de diferentes culinárias. mas cheguei focada nos produtos nacionais e tento achar bons itens “americanos”. um dos clássicos é a key lime pie, ou simplesmente: torta de limão. é muito comum nos restaurantes. e é muito comum que venha com a massa dura e seca, e o recheio duro e sem sabor.
mas não na Petee’s Pie Company. lá, as tortas são todas muito gostosas. a massa é crocante, mas fina e molhadinha. os recheios são macios, com açúcar na medida exata pra adoçar sem enjoar. tem a tradicional de limão, e diversos outros sabores. os ingredientes são sazonais, o que dá mais frescor aos produtos. minha unidade favorita fica no Lower East Side e é bem pequena, um charme pra quem sabe apreciar. eles vendem fatias e a torta inteira. e os valores são justos.



fuxicando no site, descobri que existe um livro com algumas das receitas da Petee, apelido de Petra, dona do negócio. ela diz que faz a melhor torta que o dinheiro pode pagar, usando ingredientes de verdade. eu só fui fisgada por esse storytelling depois de provar as delícias que ela produz, então, me considero isenta de influência. rs a loja é um negócio familiar local, que compra de produtores também locais. um lugar desse existir e resistir no centro do capitalismo mundial é algo a ser celebrado e compartilhado. pode colocar na lista pra visitar!
obrigada pela companhia. enquanto a próxima edição não chega, nós podemos conversar lá em @vivi_dacosta. é onde eu compartilho mais sobre as minhas inspirações, a vida e as oportunidades que eu observo por aí. aguardo suas opiniões e sugestões.
o trabalho da annie ernaux é espantoso: como ela consegue tanta profundidade em tão poucas páginas? pelas temáticas, não é uma leitura fácil, mas vale muito a pena.