um treino de corrida de intensidade moderada a alta pode causar em algumas pessoas algo chamado pelos iniciados de runner’s high. ou simplesmente: pode dar onda. uma onda natural. mas ainda assim uma onda. uma sensação de bem-estar e prazer que te deixa num estado mais relaxado.
“oi, como foi a corrida?”, perguntou o cara sentado na grama do Riverside Park com sua garrafa térmica ao lado. fazia 10 graus e ventava muito. meu treino foi curto em distância, mas 78% do tempo dentro da zona de esforço máximo.
“foi muito boa, a direção do vento me ajudou.” inspirava e expirava profundamente pra impor um ritmo mais calmo à respiração. continuava movendo o corpo pra manter o aquecimento. e aguardava o próximo movimento do personagem do dia.
“eu gosto de vir aqui pra pensar em quem eu sou. eu acho que a gente tem que buscar isso sempre, a nossa essência, sem máscaras. um rio, por exemplo”, disse, apontando pro Hudson à nossa frente, “sabe do que é feito, e segue seu fluxo, ainda não que seja sempre o mesmo. ele não deixa de ser o que ele é. e eu acho que é isso que a gente tem que buscar, se conhecer, é o que realmente importa.”
inspira, expira. como nós dois tínhamos ido parar ali?
“eu reparei que você não usa maquiagem, mantém seu rosto natural, é disso que eu tô falando. isso é muito bonito. quando eu falei com você, você respondeu. muita gente passa direto, finge que não ouve.”
os batimentos do coração já tinham se acomodado dentro da caixa torácica. pensei que aquela era a deixa (ou sinal de alerta?) pra dar tchau e pegar o caminho em direção ao metrô, de volta pra casa. mas eu decidi ficar e dar atenção àquele cara. pensei que talvez precisasse ouvir um pouco mais. ele, sem dúvidas, precisava falar.
continuou sentado e praticamente imóvel, exceto pelos movimentos musculares necessários pra falar, durante todo o tempo em que eu me mantive de pé diante dele. o que será que tinha na garrafa ali do lado? perguntou se eu era portuguesa ou brasileira.
“brasileira.”
ele é peruano, mora em Nova York há mais de 50 anos, e sentiu medo pela primeira vez em 2025. passou um período longo fora da cidade pra pensar. e curtir a Colômbia também, claro. ver as operações arbitrárias contra imigrantes na ilha de Manhattan fez nascer muitas novas perguntas na cabeça dele.
era naquilo que tinha se transformado o lugar onde ele escolheu viver, afinal?
comecei a devanear. ele também. lembrei do áudio preocupado do meu pai, de dois meses antes, apavorado com as imagens das pessoas deportadas que voltaram pro Brasil acorrentadas, num avião em condições deploráveis. saí do meu transe e disse que precisava ir. ele perguntou se podia me acompanhar, disse que morava ali perto, na 125.
eu deixei (deveria?), mas avisei que a gente tinha que andar rápido porque eu não queria me atrasar pro trabalho. ele levantou bem ligeiro, colocou a mochila nas costas e seguiu do meu lado por dentro do parque. contando da vida dele. quase não me fez perguntas. eu me dei conta de que fazia tempo que eu não passava por ali, e me senti tranquila e feliz com o reencontro.
perguntei se ele sabia qual era a estação mais próxima da linha 1 do metrô. o lítio não gosta do frio e eu estava com pouca bateria no celular. tinha que poupar pra usar o pagamento por aproximação. ele disse que a estação ficava na 103 e que me deixaria lá. seguimos.
soube que ele tem um cargo sênior nas Nações Unidas e, por isso, direito a algumas regalias. trabalha remotamente hoje em dia, quando quer ou precisa. basta pedir. veio jovem pra Nova York, estudar. eu chutaria, pelos meus cálculos, não pelas características físicas, que ele tá perto dos 70 anos, dentro da margem de erro de dois pontos para mais ou para menos.
ele me contou que gosta de correr naquela região. é uma área plana, arborizada e bem conservada. é preciso tomar cuidado nos entroncamentos com a ciclovia porque os ciclistas passam a toda. a pista é boa pra treinos de intensidade moderada ou alta. embora seja muito bonito, não está entre as minhas rotas favoritas.
a poucos metros da estação, pediu meu telefone, pra combinarmos de correr por ali. eu sabia que isso nunca ia acontecer (e que eu talvez recomendasse a qualquer amiga no meu lugar que não desse o telefone), mas passei o número. dois meses depois - e exceto pela minha extensa pesquisa no Google que confirmou tudo o que ele me disse - eu nunca mais tive notícias do Alex.
nosso último contato foi o “Hola Vivieni” que ele me mandou por mensagem às 11h14 daquele dia 25 de março.
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Amei. Consegui visualizar tudo. E ainda me lembrei de um velho ímã de geladeira compartilhado: “quero ser como um rio, que sabe permanecer seguindo em frente”.