na edição de hoje: um livro, uma audiossérie, um podcast, um show e mais uma crônica liberada pra todos.
de repente, comecei a encontrar James Baldwin em todos os cantos: exposições, palestras, relançamentos de livros, cursos. ele estava em toda parte, acompanhando minha rotina nova-iorquina e dando a ela uma dimensão mais robusta, interessante. nenhum grande mistério havia por trás disso, no entanto. em 2024, o brilhante autor e ícone ativista americano teria completado 100 anos de vida. e ele ainda está em toda parte.
“É só através da sua música - a qual os americanos conseguem admirar porque um sentimentalismo protetor lhes restringe a compreensão dela - que o negro dos Estados Unidos pode contar sua história. É uma história que ainda não foi contada de nenhuma outra forma e que nenhum americano está preparado para ouvir.” James Baldwin
o trecho acima é a abertura do ensaio Muitos milhares de mortos, que faz parte da coletânea Notas de um filho nativo, uma boa porta de entrada para o universo do autor, caso você ainda não o conheça. no texto, Baldwin faz uma análise lúcida e comovente sobre como a história dos negros nos Estados Unidos é a história do próprio país, que desumaniza os negros, às custas da própria identidade.
eu tinha planejado usar esse trecho como gancho pra introduzir aqui a indicação de um dos meus podcasts favoritos dos últimos tempos. e ainda farei isso, logo abaixo, mas não posso ignorar uma notícia que me atravessou hoje de manhã. escrevo na noite do dia 25 de fevereiro.
ontem, no Rio de Janeiro de águas cristalinas no verão mais lindo do mundo, Igor Melo de Carvalho foi baleado quando estava a caminho de casa, depois de um dia com dupla jornada de trabalho. jovem, universitário, com um filho, mil sonhos, Igor foi supostamente confundido com um assaltante e alvejado pelas costas por um policial reformado. ele ficou horas sob custódia no hospital, internado em estado grave, suspeito de um crime que não cometeu. Igor é negro.
a desumanização da vida de Igor, repetidas vezes, é uma agressão coletiva, um sintoma escancarado de falência social. como o racismo do qual ele foi vítima. passei o dia com um o peito pesado. revisitar hoje esse ensaio de Baldwin foi como reencontrar um velho amigo e ser acolhida por ele. não é fácil constatar que uma análise tão dolorosa escrita mais de 60 anos atrás ainda cai como uma luva à realidade em que eu vivo. mas é motivador lembrar que existem vozes que não se calam, que documentam os fatos por uma perspectiva que faz sentido pra mim e que contribuem pra construção de algo verdadeiramente melhor.
entre as vozes contemporâneas que eu acho que devem ser ouvidas com atenção e reverência, está a do Gilberto Porcidonio, narrador da audiossérie Chumbo e Soul, disponível na Audible. em 8 episódios, a obra conta uma história da ditadura brasileira que não é a mais contada por aí, a história de como a população negra foi afetada pelos anos de chumbo no Brasil, e da música como via de protesto.
na escola, eu aprendi sobre o regime militar. e depois eu estudei mais sobre o regime militar. e existem registros documentais que lembram esse período da História brasileira sob um determinado ponto de vista. mas existem também histórias dessa época que foram apagadas e - como acontece até hoje com vítimas como o Igor - desumanizadas repetidas vezes. e é o resgate e a preservação dessa memória que a audiossérie promove.
a coordenação editorial do projeto é da Flávia Vieira, que também assina o roteiro, e é uma enorme inspiração pra mim. uma amiga da vida, especialista em contar as histórias que merecem ser contadas e que nem sempre são vistas de primeira. vale muito ouvir o Se não me falha a memória, podcast dela sobre a nossa cultura, a partir de uma perspectiva afrocentrada. abaixo, um dos meus episódios favoritos.
e, voltando a Chumbo e Soul: na série, o Gilberto Porcidonio costura a história privada da família dele com a história pública do país. é impossível não se lembrar de Baldwin, concorda? a gente conhece os pais do Gilberto, e a história de amor deles, em meio à repressão e à resistência. a música é uma das protagonistas, o soul, as pistas de bailes charme... se você fechar os olhos enquanto ouve, consegue ver as imagens diante de você. às vezes, elas vão ser inebriantes, às vezes, sufocantes.
se você tem Prime, dá uma olhada aí no aplicativo se não tem direto a uma cortesia da Audible. eu tinha e nem sabia. devorei a audiossérie duas vezes já!
em novembro do ano passado, no meio da cobertura insana da eleição americana, tive a oportunidade preciosa de tirar a foto que abre essa edição, na National Portrait Gallery, em Washington. a foto da foto de Bernard Gotfryd, de 1965, faz parte de uma mostra que celebra a resistência queer, a partir da figura de James Baldwin. fiz o passeio com uma colega de trabalho, falamos muito sobre Toni Morrison, e nossa conversa ressoa até hoje em mim. obrigada, Renata!
inspiração da edição
duas semanas atrás, o rapper Kendrick Lamar fez o show de intervalo do super bowl mais comentado em anos aqui nos Estados Unidos. super bowl é como é chamada a final do campeonato de futebol americano, o evento esportivo mais popular e de maior audiência televisiva do país. e, em bom português, eu diria que a atração principal da noite deu o nome na apresentação.
Kendrick Lamar entregou um espetáculo artístico impecável do ponto de vista técnico, e avassalador do ponto de vista simbólico, com um roteiro pontuado por provocações políticas, críticas sociais e deboche, muito deboche. esse vídeo do Kaíque Mattos, do G1, explica as principais referências do show, que vão da moda aos games, passando pela treta entre Lamar e Drake.
a maratona pré-Oscar segue firme e forte por aqui, vi vários filmes no últimos dias, mas vou deixar pra falar sobre o que mais me interessou nas próximas edições. deixo como sugestão essa edição especial do salvei pros últimos palpites antes de domingo. foco na torcida pro dia 2!
obrigada pela leitura. lá em @vivi_dacosta, a gente pode conversar um pouco mais sobre tudo! aqui, eu liberei acesso a uma crônica que enviei pros assinantes pagos no mês passado e na qual eu falo sobre o fim da fofoca. 🤭
obaaa, depois manda pra gente teu bolão do Oscar 😂
Sempre termino querendo ler mais e mais e mais dos seus textos e impressões sobre o mundo e a vida. ❤️