eu sei pouquíssimo sobre o Jorge. mas sei que sei o suficiente. ele é o cara que lê pra conhecer a versão da História a partir do ponto de vista do oprimido. porque a História contada pelo opressor a gente tá cansado de saber e esconde detalhes importantes. foi ele quem me disse isso, numa das minhas primeiras semanas em Nova York. foi o suficiente.
o Jorge fala muito. mas pouquíssimo sobre ele mesmo. não é que eu não tenha tentado surrupiar informações pessoais dele. eu tentei. soltei aqui e acolá uma pergunta sobre a infância, outra sobre a família, outra sobre a vida dele hoje em dia. ele ignorava minha curiosidade, e me indicava a leitura de The Hundred Years’ War on Palestine, do Rashid Khalidi, pra entender melhor o conflito no Oriente Médio.
ele também não sabia muito sobre mim. só o suficiente.
eu saquei logo que nossa troca de ideias não ia se basear no papo furado básico sobre quem a gente é e pra onde a gente vai. foquei, então, na troca genuína do que cada um podia dar além disso. passei a ouvir muito o Jorge falando sobre o que ele queria falar. que é, basicamente, sobre literatura, a via pela qual ele busca entender o mundo.
e eu me tornei uma espécie de Google vivo sobre o Rio de Janeiro. abracei o privilégio de conviver com um equatoriano que ama a versão do oprimido da minha cidade. ele gosta de me ouvir contar sobre a formação dos Complexos da Maré e do Alemão, sobre a falência da segurança pública, sobre a herança escravocrata que a antiga capital carrega. não raro, eu tenho que estudar pra tirar as dúvidas do Jorge.
ele leu tudo sobre o amor, da bell hooks, em português, e veio me contar com uma expressão de pesar que teria se poupado e poupado os outros de muito sofrimento se tivesse lido esse livro bem antes na vida.
Jorge já namorou uma brasileira, carioca do subúrbio. não sei como eles se conheceram, quanto tempo durou e quando acabou. não isso que importe. ele já visitou a Zona Norte do Rio e Arraial do Cabo. quer voltar pra fazer o tour Circuito de Herança Africana porque leu O crime do Cais do Valongo, da Eliana Alves Cruz, e diz que precisa ver pessoalmente esse lugar onde negros sequestrados eram enterrados sem dignidade depois de não resistirem à viagem da África até o Brasil.
Jorge não discute política com a família dele. acha que não vale a pena. e sabe que a versão do opressor tem boa penetração e capilaridade. ele prefere desvendar a América contada por Ned Blackhawk e Mehrsa Baradaran.
nós nos vemos, normalmente, às quintas e sextas-feiras à noite. mas não é garantido porque, às vezes, o plantão do Jorge na portaria muda. quando nos conhecemos, assim que eu me mudei pro prédio novo, Jorge me disse que ouvir outras vozes e estar aberto a outras perspectivas era bom pra sair da letargia e ficar mais atento ao mundo.
eu ouço e registro muito bem tudo o que o Jorge me fala. e adoro contar pras pessoas o suficiente que eu sei sobre ele.
esse texto é parte de uma série de crônicas que eu escrevi depois que eu me mudei pra Nova York. os textos ficam disponíveis, primeiro, para quem apoia financeiramente meu projeto de escrita.
se você gostou, que tal enviar pra algum amigo que também pode se interessar?
Que máximo o Jorge!
Jorge, nem te conheço, já te considero pacas!