esse texto foi escrito depois que eu me mudei pra Nova York e decidi transformar em crônicas minhas experiência na cidade. as edições são enviadas quinzenalmente e ficam disponíveis, primeiro, para quem apoia financeiramente a newsletter.
todas as cabeças do recinto se viraram na nossa direção quando paramos no batente da porta sem convite. foi um momento idílico. eu tive certeza que estava vivendo algo memorável quando aquelas pessoas sustentaram o olhar sobre nós, a dupla que estava no lugar errado, na hora errada.
na fração de segundo que durou a medida de cima a baixo, eu fui tomada por uma vergonha imensa. mas o puxão pela mão veio com uma ordem: “vamos”. vesti minha melhor cara e fui, olhando atenta pras figuras ao redor.
"a gente tem que tomar uma cerveja aqui."
eu concordei. não me pareceu que eu tivesse a opção de discordar.
a cada passo, tudo em volta ecoava em voz alta dentro da minha cabeça. o lugar não estava barulhento e tinha meia dúzia de gente. mas as paredes cobertas de bandeiras, todo tipo de quadros e luzes tinham muito a dizer. estavam ali o grupo da sinuca e o do dominó. os aparelhos de televisão transmitiam alguma partida esportiva, mas não me lembro exatamente do quê. achei curiosa a disposição das inúmeras caixas de bebida ao redor do salão.
a gente atravessou aquele labirinto e chegou à parte dos fundos, onde ficava o bar. é óbvio que o pagamento era apenas em dinheiro. é evidente a gente não tinha o suficiente pra duas cervejas. eu, adivinhe, não tinha grana ali nem pra meia cerveja. mas, é claro que o dono da parada liberou as duas garrafas pelos trocados que estavam amassados na carteira.
minha amiga me falou sobre a dona da casa, Toñita. la reina usa muitos anéis nos dedos e está em diversos dos quadros que adornam o ambiente. segundo minha amiga, normalmente, o lugar fica lotado de jovens moradores do bairro, desgraçadamente gentrificado. a ausência deles era intrigante. e eu notei em cima do balcão uma pista pro motivo do sumiço-hipster: um morto estava sendo homenageado naquela noite.
Hector Valentin Ingles tinha feito a passagem 6 dias antes. aos 63 anos. o santinho não tem a foto dele, o que me decepciona até hoje quando olho pro souvenir. de um lado, a imagem do Imaculado Coração de Maria. do outro, o salmo 23, em espanhol. El Señor es mi pastor. Hector era taurino, a quem interessar possa.
eu peguei o santinho pra mim e decidi guardar em casa a recordação de um desconhecido. não me pareceu que eu tivesse a opção de não pegar.
nós tomamos nossas cervejas sentadas em bancos altos, perto do bar, com vista privilegiada pro salão. as pessoas nos observavam e eu as observava de volta. na outra ponta, vi panelas de comida repousadas numa mesa grande. aqueles que se serviam o faziam sem cerimônia. eu nunca tive tanta certeza de que estava de penetra em um evento. mas, àquela altura, não me importava mais com isso. enquanto esperava pra comer num restaurante chique - e caro - do outro lado da rua, estava achando o inesperado incrível.
a morte deu sentido e ordem à cena toda.
a lembrança material daquele dia ficou quatro meses guardada no fundo de uma gaveta até que, ao ouvir a canção NUEVAYoL, do Bad Bunny, me transportei de volta àquele pedaço de Porto Rico. tocar a homenagem plastificada a Hector foi como escavar a memória e reencontrar os olhares surpresos que receberam sem objeções duas forasteiras num funeral no Brooklyn.
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Amei a escrita e a história. E fiquei com gostinho de quero mais. Aliás, quero conhecer esses lugares pessoalmente.