Nova York coleciona clichês aos borbotões. existem muitas coisas que, no imaginário popular, correspondem à vida na cidade que nunca dorme. e várias são verdadeiras. esbarrar em famosos no meio da rua, por exemplo, é uma delas.
pra pessoa nascida e criada no Rio de Janeiro, essa é uma possibilidade que não impressiona tanto. pelo menos, até uma tarde atarefada de setembro quando um e-mail sem floreios faz os olhos duvidarem do que estão lendo:
Pedro Almodóvar.
na cidade.
dali a dez dias.
autografando pessoalmente o novo livro.
precisei reler várias vezes pra assimilar. paguei os 28 dólares da pré-venda meio incrédula, como se não fosse absolutamente normal meu diretor de cinema favorito estar na cidade que é considerada por muitos como a capital cultural do mundo.
era o primeiro sábado do mês quando os primeiros da fila chegaram à livraria. eu, entre eles. faltavam uns vinte minutos pro horário de início do evento. não demorou pros funcionários começarem a distribuir os exemplares dos adiantados. na minha frente, havia um casal. um deles foi até o balcão pegar o livro. o outro, extrovertido, comentou comigo enquanto esperávamos:
- ele é tímido.
eu sorri e pedi que ele guardasse meu lugar enquanto eu mesma buscava meu livro. voltei e engatamos um papo sobre o que tinha nos levado até ali.
o tímido já tinha se encontrado com Almodóvar em Nova York, décadas antes, e trazia com ele a foto antiga que queria mostrar ao diretor. foi curioso ver aquela versão mais jovem de uma pessoa que eu tinha acabado de conhecer. um pouco mais magro, com cabelos mais escuros e roupas mais coloridas e despojadas.
nos anos 90, ele trabalhava numa livraria no Greenwich Village, onde Almodóvar, naquela época, tinha feito uma tarde de autógrafos. aquela espécie de coincidência tantos anos depois emocionava meu colega tímido. dava pra sentir que ele estava apreensivo.
o outro estava só acompanhando. em tese. porque ele não é daquelas companhias que você pode ignorar. o extrovertido me contou que eles passaram as duas semanas anteriores revendo, todas as noites, filmes do diretor espanhol, acompanhados de uma taça de vinho. que bela ideia!
faltavam dois longas, dos que conseguiram encontrar disponíveis online. ele discorreu apaixonadamente sobre as sensações que as obras de Almodóvar despertam: inquietação, asco, admiração. concluímos que Almodóvar é um mestre em expôr a dualidade humana dos personagens e de quem assiste.
lá pelas tantas, ele falou sobre a importância da música nas obras do espanhol. e eu contei, então, que era brasileira. precisava, óbvio, introduzir Caetano Veloso no papo. passamos longos minutos conversando sobre o cinema que inquieta, o Brasil, a Itália - de onde é o extrovertido -, o amor desmedido dos personagens de Almodóvar, e a arte como instrumento pra entender a vida.
até que chegou a vez dos meus companheiros de fila. aquela noite de autógrafos tinha uma só regra: não tire fotos com o autor. mas, ao ver o registro antigo, com o tímido, no Greenwich Village, Almodóvar disse:
- temos que repetir!
o tímido contornou a mesa de madeira e se posicionou ao lado do ídolo. sorrisos largos. o extrovertido fez o registro. e, enquanto trocávamos de lugar diante de Almodóvar, ele passou por mim e disse:
- me dá seu celular.
rapidamente peguei o aparelho, abri a câmera e entreguei na mão daquele completo e encantador desconhecido.
parei em frente a Almodóvar me sentindo inebriada. falei qualquer abobrinha porque estava mais concentrada em gravar os mil detalhes aquele momento nova iorquino.
de repente, o extrovertido falou, num tom de voz consideravelmente alto:
- ela é brasileira!
Almodóvar levantou a cabeça e sorriu pra mim. disse que amava o Brasil, que era amigo do Caetano e que conhecia a casa dele. eu falei que o cantor baiano adorava mesmo receber pessoas em casa, como se fosse, eu também, íntima dos dois.
por que a gente fica abobada e parece ter um apagão mental quando está diante de pessoas que admiramos tanto? enquanto eu pensava nisso, o extrovertido já tinha se posicionado ao meu lado e estava demandando uma foto minha com Almodóvar pra registrar aquele encontro.
a equipe do diretor me fuzilou com os olhos.
pro azar deles, eu estava totalmente empoderada pelo meu novo e destemido amigo. dei meia volta na mesa e abri meu melhor sorriso ao lado do cara que me ensinou com a arte dele o poder de ir além das convenções e subverter os padrões, a ver beleza no mundo colorido em tons fortes e a estar aberta às experiências.
esse texto é parte de uma série de crônicas que eu escrevi depois que eu me mudei pra Nova York. os envios são quinzenais e os textos estão disponíveis na íntegra pra quem apoia financeiramente meu projeto de escrita. se você gostou, que tal enviar pra algum amigo que também pode se interessar?
obrigada!
Que delícia de momento, Vivi!! Deu aquele frio no estômago só de ler, imagino você lá! =)
Que história!!! No meio, eu já estava ansiosa e contando demais com a boa vontade do amigo extrovertido para tirar a sua foto também. Que bom que ele não me decepcionou!!